Na eletrônica prática e experimental, alguns fenômenos muitas vezes considerados limites de operação de componentes podem ser utilizados de forma criativa e eficiente em circuitos. Um desses fenômenos é o efeito avalanche em transistores bipolares de junção (BJTs). Embora seja mais comum associar esse efeito a diodos Zener ou à região de ruptura reversa dos transistores como uma condição indesejável, ele pode ser explorado intencionalmente em certos contextos.
Neste artigo, vamos entender o que é o modo avalanche reverso em BJTs, como ele se manifesta fisicamente e eletricamente, e como podemos calcular os elementos do circuito — como resistores e capacitores — em aplicações práticas. Um dos exemplos clássicos abordados será o pisca-pisca com LED utilizando a quebra controlada do transistor.
O que é o Efeito Avalanche e como ele ocorre em BJTs
O efeito avalanche é um fenômeno físico que ocorre em dispositivos semicondutores quando uma junção PN polarizada reversamente é submetida a uma tensão suficientemente alta, fazendo com que a corrente aumente de forma abrupta devido à ionização por impacto. Isso acontece quando os portadores minoritários (elétrons ou lacunas) ganham energia suficiente do campo elétrico aplicado para liberar outros portadores, criando uma reação em cadeia.
Nos transistores bipolares (BJTs), esse efeito pode ocorrer na junção coletor-base quando ela está fortemente polarizada reversamente. Em condições normais de operação, essa junção é polarizada reversa com uma tensão relativamente baixa, o suficiente apenas para bloquear corrente. Porém, se a tensão entre o coletor e a base exceder um determinado valor — chamado de tensão de ruptura reversa da junção coletor-base (tipicamente entre 6 V e 40 V dependendo do modelo do transistor) — ocorre a avalanche.
Em muitos projetos convencionais, essa situação é evitada, pois pode causar danos térmicos ou degradação ao transistor. No entanto, transistores como o 2N3904, BC547 ou 2N2222 demonstram robustez surpreendente quando operados cuidadosamente nesse regime, podendo conduzir corrente de forma controlada durante o processo de avalanche, sem se destruir — especialmente se houver limitação de corrente na base e no coletor.

Modelo Físico e Corrente de Avalanche
Durante a avalanche, a corrente através da junção coletor-base é predominantemente corrente de portadores gerados por impacto, e o transistor entra em uma espécie de regime de comutação abrupta, parecido com o de um diodo Zener em modo reverso.
Se a base estiver flutuante ou conectada por um resistor de valor elevado ao negativo da fonte, a corrente de avalanche pode carregar lentamente um capacitor, até que a tensão atinja o limiar de ruptura e o transistor dispare, descarregando o capacitor — criando um oscilador relaxador.
Fórmulas Envolvidas e Cálculo dos Componentes
Quando utilizamos o transistor BJT em modo avalanche controlado, estamos basicamente explorando um circuito oscilador do tipo relaxador, onde a tensão de ruptura (breakdown) da junção coletor-base determina o ponto de disparo. O comportamento do circuito é dominado por três elementos principais:
- Tensão de ruptura \(V_{BR(CBO)}\)
- Resistência de carga R
- Capacitor de temporização C
O circuito básico consiste em um capacitor C conectado entre o coletor e o terra, um resistor RRR limitador de corrente conectado à fonte \(V_{CC}\), e um LED conectado ao emissor (ou ao coletor com inversão de polaridade). A base do transistor pode estar desconectada (flutuante) ou ligada por um resistor alto ao terra para garantir o disparo.
1. Cálculo da Constante de Tempo
A constante de tempo de carga do capacitor é dada por: \[\tau = R \cdot C\]
Esse tempo define quanto tempo o capacitor leva para carregar até atingir a tensão de ruptura da junção coletor-base do transistor. Quando isso ocorre, o transistor entra em avalanche e descarrega o capacitor abruptamente, acendendo o LED (que deve estar em série com o caminho de descarga).
2. Frequência de Oscilação
Assumindo que o capacitor leva um tempo \(t_{osc}\) para carregar até o ponto de ruptura VBR(CBO)V_{BR(CBO)}VBR(CBO), podemos estimar o tempo entre os pulsos (o período de oscilação) como: \[t_{osc} \approx -R \cdot C \cdot \ln\left(1 – \frac{V_{BR(CBO)}}{V_{CC}}\right)\]
E a frequência de oscilação: \[f = \frac{1}{t_{osc}}\]
Essa fórmula é uma aproximação válida quando o circuito é simples e o comportamento da carga é próximo de uma exponencial pura.
3. Escolha dos Componentes
Para projetar o circuito:

- Escolha \(V_{CC}\) maior que \(V_{BR(CBO)}\) do transistor (por exemplo, 12V com transistor de 9V de avalanche).
- Escolha C entre 1 nF a 1 µF para frequências visíveis (de 0,5 Hz a 5 Hz).
- Calcule R para limitar a corrente e definir o tempo de carga. Tipicamente entre 10 kΩ a 1 MΩ.
- O LED deve estar orientado de forma a conduzir no caminho de descarga do capacitor (normalmente entre coletor e terra).
Exemplo:
Usando um 2N3904, cuja tensão de avalanche típica é \(V_{BR(CBO)} \approx 9V\), com fonte de 12V, resistor de 100 kΩ e capacitor de 1 µF: \[t_{osc} \approx -100 \cdot 10^3 \cdot 10^{-6} \cdot \ln\left(1 – \frac{9}{12}\right) \approx 0{,}22\,s\]
Logo, o LED piscará a cada 220 ms aproximadamente (frequência ≈ 4,5 Hz).
Aplicações Práticas e Cuidados ao Usar Transistores em Modo Avalanche
Apesar de parecer um abuso das especificações dos componentes, o uso do modo avalanche reverso em transistores BJT tem aplicações práticas legítimas — especialmente em circuitos educacionais, experimentais e de demonstração. Um dos exemplos mais didáticos e interessantes é o pisca-pisca com LED baseado em ruptura avalanche.
Aplicações Práticas
- Osciladores de relaxação: Utilizam a tensão de ruptura como limiar de comutação para gerar pulsos periódicos.
- Pisca-pisca com LED: Quando a tensão do capacitor ultrapassa a tensão de ruptura, o transistor conduz e descarrega o capacitor rapidamente, acendendo o LED. O ciclo se repete com a recarga do capacitor.
- Geradores de pulso: Circuitos que requerem um comportamento abrupto e repetitivo sem uso de CI.
- Demonstrações didáticas: Mostram na prática como a tensão de ruptura se comporta e os efeitos do campo elétrico na estrutura PN.
- Fontes de pulso de alta tensão: Utilizando bobinas e ruptura controlada para gerar pulsos de alta tensão breves.
Esses circuitos mostram como um componente comum pode ser usado além das aplicações tradicionais, despertando a criatividade dos estudantes e engenheiros.

Cuidados Essenciais
Apesar da utilidade, alguns cuidados são indispensáveis:
- Limitação de corrente: A corrente durante o processo de avalanche deve ser controlada rigorosamente para evitar degradação térmica da junção.
- Dissipação de potência: O transistor não foi projetado para operar continuamente nesse regime. Portanto, valores altos de RRR são fundamentais.
- Tensão de alimentação: Deve-se garantir que a tensão \(V_{CC}\) esteja apenas levemente acima de \(V_{BR(CBO)}\) para evitar picos excessivos.
- Comportamento não documentado: Muitos transistores não têm o valor de \(V_{BR(CBO)}\) especificado em datasheets, pois essa não é uma região de operação garantida. Por isso, testes empíricos são importantes.
- Evite uso prolongado: Não é aconselhável usar esse modo em aplicações comerciais ou de longa duração. É melhor utilizá-lo como experiência ou experimento temporário.
Alguns transistores como o 2N3904, 2N2222, BC548, BC547, e até o BD135 têm se mostrado resilientes nesse tipo de aplicação, mas cada lote pode apresentar variações, por isso, a experimentação segura é a melhor abordagem.
2N4401 | ~12.5V |
SS9014 | ~12.5V |
2N4124 | ~12V |
2N3904 | ~12V |
BD137 | ~11V |
BD139 | ~11V |
BC337 | ~9V |
SS9018 | ~8.2V |
Quando a Ruptura se Torna Inovação
O estudo do efeito avalanche em transistores bipolares (BJTs) revela que até mesmo os limites de operação de um componente podem ser utilizados de forma criativa e educativa. Ao permitir que a junção coletor-base ultrapasse seu ponto de ruptura de forma controlada, conseguimos explorar um comportamento abrupto e útil — como o disparo de um LED em um circuito oscilador de relaxação.
Além de ensinar conceitos fundamentais como tempo de carga de capacitor, constante de tempo RC e comportamento de junções PN, esses circuitos também instigam a curiosidade e a experimentação — características essenciais para todo apaixonado por eletrônica.
Contudo, é preciso respeitar os limites físicos do componente, entender que se trata de uma operação não convencional, e garantir que corrente, tensão e dissipação estejam sempre dentro de níveis seguros.
O uso do efeito avalanche em BJTs, especialmente em circuitos como o pisca-pisca com LED, é uma bela porta de entrada para o mundo da eletrônica analógica criativa. Com poucos componentes e um pouco de paciência, é possível montar um experimento que mistura física, eletrônica e mágica — tudo ao alcance da bancada.
Sobre o Autor
Carlos Delfino
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Um Eterno Aprendiz.
Professor de Introdução a Programação, programação com JavaScript, TypeScript, C/C++ e Python
Professor de Eletrônica Básica
Professor de programação de Microcontroladores.
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